As Humanidades desempenham um papel fulcral na integração dos valores e princípios humanistas numa sociedade centrada na tecnologia. Em pleno século XX, por via de uma relação estreita e dinâmica, fazendo a ponte entre as humanidades e o digital, surgem as Humanidades Digitais.
Mas o que são as Humanidades Digitais? Apesar de o termo existir há quase duas décadas (normalmente atribuído aos editores da antologia de 2004, A Companion to Digital Humanities), defini-lo não é tarefa fácil. As Humanidades Digitais refletem um novo paradigma de atuação, que tem o digital como elemento catalisador e se manifesta em frentes diversas: no domínio da preservação da cultura com recurso ao digital; na aplicação de métodos computacionais capazes de extrair e processar dados não estruturados; na transposição de géneros e formas textuais para o ambiente digital, que ganham uma vida nova e alcançam novos públicos. Este diálogo transdisciplinar potencia abordagens e ferramentas inovadoras no ensino e na aprendizagem, além de abrir novos caminhos de investigação no âmbito da estatística computacional, pesquisa e recuperação, modelação de tópicos, análise de dados e visualização de informação aplicados a artefactos culturais.
A dimensão global alcançada pelas Humanidades Digitais manifesta-se na pluralidade de associações criadas em torno desta transdisciplina, tais como a European Association for Literary and Linguistic Computing (ALLC) [1], a Canadian Society for Digital Humanities / Société Canadienne des Humanités Numériques (CSDH/SCHN) [2], a Asociaziones per l’informatica umanistica e Cultura Digitale (AIUCD) [3], a Australasian Association for Digital Humanities (aaDH) [4], a Japanese Association for Digital Humanities (JADH) [5] e a Associação das Humanidades Digitais (AHDig) [6] destinada aos projetos em língua portuguesa, entre outras. Muitas destas associações integram, por sua vez, a Alliance of Digital Humanities Organizations (ADHO) [7].
Pensar em Humanidades Digitais remete-nos para a preservação digital: bibliotecas virtuais, inventariação de espólios, digitalização de textos antigos e/ou manuscritos. Um exemplo atual da importância do trabalho de preservação digital desenvolvido no âmbito das Humanidades Digitais é o movimento SUCHO (Saving Ukrainian Cultural Heritage Online) [8], que pretende salvar os arquivos e as exposições digitais dos museus da Ucrânia ameaçados pela guerra. Neste sentido, Maria Clara Paixão de Sousa fala de uma Filologia Digital, ligada à criação de acervos textuais em formato eletrónico, sistematizados segundo determinados critérios e suscetíveis de serem processados por computador, com recurso à linguística computacional e à linguística de corpus [9]. No Centro de Estudos Humanísticos (CEHUM) da Universidade do Minho, são vários os projetos desenvolvidos com vista à preservação digital do património textual, nomeadamente o projeto de Catalogação e Estudo do Espólio Eurico Thomaz de Lima [10], bem como dos espaços físicos, de que é exemplo a visita virtual da Casa de Camilo Castelo Branco [11] e, ainda, das vivências pessoais, como é o caso do Nanocast [12], um canal podcast com cientistas do Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia que apresentam, na sua língua materna, o seu percurso enquanto investigadores.
Pensar nas Humanidades Digitais, numa época em que se assiste a um aumento exponencial do volume de informação digital, leva-nos também para a exploração de domínios associados às engenharias, tais como a aprendizagem automática, a ciência de dados, a inteligência artificial e o processamento de linguagem natural ou ainda a interação humano-computador. É essencial tirar partido da relação entre estas disciplinas para aproveitar e reciclar dados em acesso aberto com o objetivo de criar conteúdos multimodais, de forma criativa e dinâmica. Um exemplo de projeto que se centra nesse processo de “alquimia” dos dados abertos é o PortLinguE [13], projeto financiado pela FCT e desenvolvido na UM. O PortLinguE parte de dados disponibilizados em repositórios científicos para a criação de recursos de apoio às línguas de especialidade e à literacia académica, como, por exemplo, um motor de pesquisa bilingue, cuja construção se afigura desafiante uma vez que permite obter correspondências de termos em línguas diferentes a partir de um corpus comparável de artigos científicos, ou seja, com base em textos originais e não traduzidos.
Muitos dos projetos que aqui mencionámos estão a ser desenvolvidos por alunos do Mestrado em Humanidades Digitais da Universidade do Minho, o primeiro mestrado da área em Portugal que teve a sua primeira edição em 2018/2019. A Escola de Letras, Artes e Ciências Humanas tem sido pioneira na área das Humanidades Digitais e junta à sua oferta educativa o recém-criado curso de Formação Especializada Criação de Conteúdos em Ambientes Digitais. Estes cursos inscrevem-se no paradigma da transformação digital, que atualmente se exige na esfera profissional.
Contudo, essa transformação digital não pode acontecer à revelia das humanidades, pois se o desafio é digital, o desígnio é humanista.
Referências