Localizado no noroeste da África, o Marrocos é banhado pelo Oceano Atlântico e pelo Mar Mediterrâneo. Assim, o turista pode optar entre tomar um chá num café com "vista para a Espanha" ou banhar-se nas praias atlânticas. Quem gosta de mais emoção, pode excursionar pelas montanhas da Cordilheira do Atlas, Dobramento Moderno que perfura o país pelo meio e margeia o Deserto do Saara. E esse, o Saara, foi a minha opção de aventura.
Mas o que me conduz a escrever as presentes mal-traçadas não é o
fato de ter estado no Saara. Isso qualquer um pode (e se puder,
deve). É só marcar com um guia, subir num jipe "todo terreno",
entrar no deserto, enterrar os pés nas dunas, montar no camelo e
bater umas fotos. Serão histórias para uma vida.
O que me leva mesmo a calejar os dedos com essas palavras é que,
querendo ou não, junto com poucos e bons amigos, tive uma
experiência diferenciada no Saara, onde conheci seres humanos
exemplares. Esqueçam os monumentos. Nada nas viagens é mais
importante do que conhecer seres humanos exemplares.
Sob um céu onde não cabem mais estrelas, os Berberes cantam
iluminados somente pelas luzes do fogo e da lua. Versam sobre
amor, companheirismo e sobre o deserto. Eles são homens do Saara.
Ali nasceram e ali querem estar. Caminham a passos largos. Tratam
dos dromedários e sorriem, porque não é preciso muito para
sorrir.
Os homens do Saara têm mãos fortes, fala pausada e olhar sincero.
Com o pouco que falam, dizem muito. Ensinam a entender o vento,
as dunas e o sol. Explicam que para um verdadeiro nômade
sobreviver no deserto, ele precisa de nada mais do que chá e
tâmaras. Somente a falta de chuva preocupa-os e faz com que eles
abandonem sua "casa" para agruparem-se em vilas.
Lahcen Alloud, Berbere que recebeu a mim e meus amigos com seu
grupo, explica que os nômades do Saara Marroquino foram
prejudicados com uma recente obra do Governo: a construção de uma
represa nos arredores da cidade de Ouarzazate. Com isso, o rio
Dadès não alcança mais o deserto, o que deixa a população nômade
completamente dependente das irregulares chuvas.
Surge o óbvio questionamento: então os nômades são contra esse
Governo do Marrocos? "Não. A represa tinha que ser construída
porque as cidades estão crescendo. A população urbana precisa de
água potável e eletricidade", diz Lahcen, deixando no ar a dúvida
se aquela resposta é reflexo de um completo afastamento das
discussões políticas ou se é um consciente posicionamento de
alteridade. "Quando chove, imediatamente, todas as famílias
Berberes voltam para o deserto, porque esse é nosso lugar",
conclui.
Porém, alguns Berberes não conseguem adaptar-se à vida na vilas e
relutam para sair do deserto, mesmo que por pouco tempo. É o caso
de Ami, irmão de Lahcen. Conheci sua tenda, montada por entre
dunas baixas e algumas árvores secas. Ótima localização, segundo
as palavras do próprio Ami: "Aqui eu estou a duas horas de um
poço pra "lá", a uma hora de um poço pro "outro lado" e a três
horas de um poço pra "lá". Não faço idéia do que isso quer dizer.

Caminhando pelo Saara com Lahcen, aprendi o significado de
algumas palavras árabes, como Bahía
, que pra eles quer
dizer "Maravilhoso" ou "Fantástico". Então eu disse que com
aquelas palavras em árabe, ele já sabia como era a minha terra,
tão fantástica quanto a dele. Daí, falei um pouco sobre a relação
da Bahia com a África, da religião, dos escravos e terminei
citando um poema que critica a escravidão, não lembro o autor,
cujos versos dizem algo parecido com "Primeiro, me roubaram da
África. Depois, roubaram a África de mim". Foi quando Lahcen
parou, respirou um pouco e adotando um outro ponto de vista para
entender aquilo, disse: "Essa é uma frase forte mas...olhe em
volta, Victor. Você está no Saara. Talvez nunca mais volte aqui.
Mas você acha mesmo possível que roubem isso de você?".
Então, só se ouviu o vento.
Texto e Fotografia: Victor Uchôa